Como o Flamengo se tornou uma potência econômica no futebol brasileiro?

A reconstrução financeira do Flamengo começou em 2013, quando o grupo que assumiu a presidência se deparou com uma dívida bruta de R$ 750 milhões, o que colocava o time com a maior dívida do Brasil. Desde então, a diretoria concentrou esforços para reverter essa situação.

O processo passou por auditoria, corte de gastos, negociação de dívidas e geração de receita. Hoje, o Flamengo se tornou referência e caso de estudos para clubes e até mesmo empresas.

Pontos importantes:

  • Equipe carioca viu receita com futebol subir de R$ 174 milhões em 2012 para próximo de R$ 1 bi em 2019.
  • Em 2012, o déficit era de R$ 62 milhões. Em 2017, o Flamengo registrou um superávit de R$ 159 milhões.
  • Endividamento do clube carioca era de R$ 750 milhões em 2013, chegou a cair para R$ 455 milhões em 2017.
  • Flamengo investe pesado em infraestrutura, jogadores e conquista competições importantes
  • Mudança de direção passa por choque de gestão, boas práticas de governança corporativa e profissionalização do futebol.

O caminho para a ruína financeira

O melhor momento esportivo do Flamengo ocorreu nos anos 80. Na época, o clube carioca enfileirou títulos importantes, revelou grandes jogadores e quase conseguiu estabelecer uma hegemonia. O azar, talvez, é que o futebol não gerava tanto dinheiro como hoje.

Depois do período de bonança, o Flamengo entrou nos anos 90 e começou a se tornar muito agressivo no mercado, até que fosse necessário gastar mais do que deveria. Contratou Sávio, Romário e Edmundo para formar o melhor ataque do mundo.

A cena mais emblemática é o Romário, no auge de sua carreira em 1995, anunciando sua saída do Barcelona para o Flamengo em uma coletiva de imprensa. Uma cena que talvez nunca aconteça novamente.

Nos anos 90, o Flamengo conseguiu conquistar alguns títulos, embora em menor profusão do que na década passada. No entanto, esses títulos custaram caro, porque os altos salários dos jogadores não eram revertidos em receita. 

O Flamengo contraiu uma grande dívida que tiraria a equipe do protagonismo nacional nos anos 2000, resultado em salários atrasados, penhoras e outras dificuldades financeiras.

Eles fingem que pagam, finjo que trabalho

A frase acima se tornou famosa com o Vampeta, campeão do mundo em 2002 com a seleção brasileira. Ela é o suficiente para trazer o diagnóstico do que era o Flamengo nos anos 2000: uma bagunça e desorganização completa.

Petkovic, um dos maiores ídolos da história do Clube, ameaçou abandonar o time na final do Campeonato Carioca em 2001 por estar com salários atrasados. O Flamengo fazia péssimos negócios: vendia ou trocava jogadores promissores por jogadores de renome com a carreira numa descendente.

A troca de Adriano pelo Vampeta foi um desses negócios. O clube perdeu muitos jogadores promissores e viu sua situação financeira ir de mal a pior: dívidas crescendo, time perdendo relevância nacional e engajamento da torcida. 

“Acabou o dinheiro”

Talvez seja uma das frases mais emblemáticas do Flamengo nos anos 2000, que foi dita pelo ex-presidente Márcio Braga quando questionado sobre atrasos de salário em 2008. O Flamengo precisava vender jogadores para fechar suas contas, o que desfalcava o time nos campeonatos.

A mudança de década, de 2000 para 2010 mostra que a conquista do Brasileirão de 2009 foi um ponto fora da curva. A bagunça administrativa pioraria nos três primeiros anos da década de 2010. 

Mesmo sem dinheiro, o Flamengo fez uma “engenharia financeira” para trazer o Ronaldinho Gaúcho em 2011, assim como outros jogadores de renome, como Thiago Neves. 

O time teve bom desempenho naquele ano, embora tenha gerado descontentamento com sua principal estrela, por conta de salários atrasados. Sob a gestão de Patrícia Amorim, o Flamengo viu sua dívida crescer de forma acelerada.

Embora a gestão de Patrícia tenha piorado as finanças do clube, ela foi responsável por dar um primeiro passo nas reformas do Ninho do Urubu, o Centro de Treinamento do Flamengo. No entanto, a estrutura ainda era muito incipiente e deixava muito a desejar se comparada com o centro de treinamento dos rivais paulistas.

A mudança de paradigma

Os sócios do clube logo trataram de eleger uma diretoria com um discurso completamente diferente: focado em responsabilidade financeira, gestão, organização e profissionalização. E foi assim que o grupo comandado por Rodolfo Landim, Wallin, Claudio Pracrownik e Eduardo Bandeira de Mello chegou ao poder.

O grupo recém eleito trazia nomes bem sucedidos na iniciativa privada: Rodolfo Landim foi um executivo da Petrobrás, Pacrownick já trabalhou em gestoras do mercado financeiro, Wallim foi economista formado na PUC-Rio com carreira no BNDES, Eduardo Bandeira também fez carreira em bancos públicos.

Esse grupo de executivos deu o primeiro choque de gestão e profissionalismo no clube. Logo nos primeiros dias, contrataram a Ernst & Young para auditar as contas do clube e, três meses depois, foi constatado um endividamento total de R$ 750,3 milhões, tornando o Flamengo o clube mais devedor do Brasil.

A maior parte da dívida era com o fisco. Eram 394 milhões em impostos não pagos, dos quais 86,7 milhões do período da gestão Patrícia Amorim. Outros 184 milhões de reais referentes a dívidas trabalhistas e pagamentos judiciais. 

E estavam ainda 172 milhões de reais separados para cobrir futuras despesas com condenações (trabalhistas, multas e outras).

O que foi feito para sanar a dívida?

Quem tem o interesse em pagar uma dívida precisa dar o primeiro passo e descobrir o valor exato. A auditoria foi um passo importante para isso, embora tenha sido apenas o início de um projeto de 6 anos.

O segundo passo importante foi a obtenção das Certidões Negativas de Débito (CNDs) com um pagamento de R$ 40 milhões, quitando suas dívidas fiscais com o Governo Federal, Estadual e Municipal. Permitindo o Flamengo fazer contratos com empresas públicas e a obter melhor acesso a crédito.

No entanto, o verdadeiro trunfo foi transformar a torcida de 40 milhões de pessoas em receita. Uma alternativa foi a criação de um programa de sócio torcedor e a assinatura de um novo contrato com a Adidas, permitiram uma melhor geração de receitas, o que contribuiu para reforçar o caixa e criar uma nova fonte de receita recorrente.

A diretoria do Flamengo seguiu as boas práticas para aliviar o fluxo de caixa: criou receitas de curto prazo e financiou dívidas para o longo prazo. Com os anos, o clube passou a gerar lucro ao invés de prejuízos, o que colaborou para redução da dívida. Logo, foi possível investir melhor em infraestrutura e jogadores, criando equipes mais competitivas.

Com a organização das contas, o Flamengo conseguiu construir um ciclo virtuoso: equipe mais competitiva engaja mais torcedores, que consomem mais, gera mais receita, que gera mais investimentos em equipe de futebol e infraestrutura. Hoje, o clube conta com um moderno Centro de Treinamentos, com obras finalizadas após a melhora das finanças do clube.

Olhando sob o ponto de vista econômico, o Flamengo era um país que passava por uma grave recessão. Seu presidente precisou cortar gastos e aumentar impostos, que são medidas extremamente impopulares. No entanto, a economia retomou o crescimento de forma saudável e sustentável.

Uma olhada sobre os resultados financeiros

A direção do Flamengo reuniu uma equipe de profissionais qualificados com carreira reconhecida no mercado financeiro. O trabalho de Pacrownick e Tostes foi essencial na operacionalização e gestão do patrimônio do clube.

O cenário de recuperação pode ser visto no gráfico abaixo. O Flamengo acumulava déficits a cada ano: só em 2012, o déficit foi de R$ 62 milhões. A virada de chave aconteceu com a entrada da nova diretoria, que renegociou dívidas e potencializou a receita.

Observando o gráfico abaixo, é possível ver o acerto de contas do Flamengo, com promissores superávits nos anos de 2015, 2016 e 2017. Apesar dos animadores resultados, o Flamengo não chegava perto de ter a maior folha salarial do país, atrás de Palmeiras e Cruzeiro, por exemplo.

O crescimento da receita gerada com torcida foi essencial para a superação econômica do Flamengo. Em 2011, o clube faturava apenas R$ 174 milhões líquidos. Em 2019, a expectativa é que o Flamengo fature próximo de R$ 1 bilhão, o que representa um aumento de quase 10 vezes em receita. 

Portanto, o problema não era apenas a dívida, estava na baixa geração de receita. A nova gestão conseguiu profissionalizar o marketing do clube para alavancar as vendas para a torcida, um mercado de 40 milhões de potenciais consumidores.

Esse aumento de arrecadação vem do investimento que o clube precisa fazer para se tornar competitivo. Logo, é esperado que as despesas aumentem, mas de forma controlada e sustentável, que não afete o caixa do clube.

O Flamengo ainda tem uma dívida alta, mas existem diferentes categorias de endividamento. Uma coisa é uma pessoa que ganha R$ 10 mil estar pagando um financiamento com uma baixa taxa de juros, outra coisa é uma pessoa que ganha R$ 2 mil pagando R$ 20 mil de cheque especial.

Nesse caso, a dívida do Flamengo é a “dívida boa” aquela que está no longo prazo. Em 2012, o endividamento do Flamengo era extremamente nocivo e poderia levar o clube à falência.

Receita do Flamengo de 2012 x Flamengo de 2019

Em 2019, a televisão ainda continua tendo papel relevante para a receita do Flamengo (25,4%). As emissoras de televisão pagam muito dinheiro pelos direitos de transmissão dos jogos, porque os canais faturam com patrocínio, repassando parte disso para os clubes de futebol.

As receitas com televisão acabam sendo uma fonte de receita crucial para todos os times de futebol no Brasil, criando uma dependência por essa fonte de entrada. No entanto, o Flamengo conseguiu diminuir sua dependência do dinheiro da TV e transformar sua torcida (consumidores/clientes) em faturamento, gerando outras fontes de entradas. 

Sócio-torcedor e bilheteria adicionaram mais de R$ 105 milhões de reais aos cofres só nesse ano. O Flamengo conseguiu, em 2019, assumir a administração do Maracanã e registrou um recorde no número de sócios-torcedores, com 139 mil assinantes. 

Além disso, o sócio-torcedor do Flamengo é o que possui o melhor faturamento entre todos os clubes do Brasil. O plano mais barato (Nação Jr.) custa R$ 24,90 e é destinado para crianças até 14 anos. No entanto, o plano mais assinado é o Raça, que custa R$ 54,90. Todos os planos são mensais.

A boa situação financeira do Flamengo permite que o clube venda seus jogadores por um preço melhor. Só em 2019 foram mais de R$ 295 milhões arrecadados em vendas de atletas. O investimento em categorias de base vai ajudar esse número a crescer ainda mais nos próximos anos.

Já em 2012, o clube dependia quase que exclusivamente de patrocínio e direitos de TV, que somados representavam 82,5% de todo faturamento. A torcida, maior patrimônio do clube, não estava sendo monetizada. 

Além disso, o clube não tinha o estádio Maracanã, seu principal palco, que estava fechado para as reformas da Copa do Mundo de 2014. Isso dificultava ainda mais a obtenção de receitas de bilheteria, porque o Flamengo precisava jogar no Engenhão, estádio do Botafogo.

O faturamento bruto do Flamengo era de R$ 244 milhões em 2012 contra R$ 623 milhões em 2019. É preciso ressaltar que o ano de 2019 ainda não fechou, porque os dados do balanço só consideram até setembro. A tendência é que o Flamengo tenha um faturamento próximo de R$ 1 bilhão.

A dívida do Flamengo

Com obtenção das CNDs, alavancagem de receita e melhora da credibilidade, o clube conseguiu mais poder de barganha para renegociar sua dívida em prazos maiores com menores taxas de juros, conseguindo ter maior controle sobre seu passivo.

Atualmente, a dívida do Flamengo está controlada, embora tenha subido em 2019 com os investimentos feitos em jogadores como Pablo Mari, Gerson, Arrascaeta, Bruno Henrique e Rodrigo Caio. Investimento feito visando o retorno em outras receitas, aumentando a atratividade do “produto” principal, o time.

Contudo, o Flamengo deverá ter um faturamento recorde em 2019, o que acaba compensando o aumento da dívida. Lembrando, o endividamento é tolerável desde que as receitas subam na mesma proporção.

Outro passo fundamental foi a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal Rubro-Negra no estatuto do clube, consolidando a manutenção da governança corporativa. Portanto, os futuros gestores precisarão cumprir as boas práticas de gestão financeira e administrativa.

A Responsabilidade Fiscal prevê limitação de despesas, avaliação de metas e metodologias de cálculos. Quem causar prejuízos e atos lesivos ao patrimônio do clube, poderá responder com bens particulares, mesmo após término do mandato.

É bastante comum no futebol brasileiro, presidentes fazerem grandes dívidas, conseguir retorno de performance em campo e sair da gestão, deixando o rombo para a próxima gestão resolver. Isso normalmente causa uma bola de neve de dívidas, é um dos maiores problemas de gestão financeira no futebol atualmente.

O que esperar para o futuro?

Devemos esperar que o Flamengo continue faturando acima dos R$ 600 milhões nos próximos anos. O clube conseguiu entrar em um ciclo virtuoso: equipe competitiva, geração de receitas, pagamento de dívidas, estádios cheios, torcedores consumindo e mais investimentos que resultam em equipes mais competitivas ainda.

No entanto, é preciso que o clube conte com diretorias profissionais no futuro, que tenham capacidade e visão para continuar e melhorar o trabalho que está sendo feito, de forma a manter sustentável o ciclo atual do Flamengo. Hoje, se fizesse um IPO na Bolsa de Valores, o Flamengo estaria avaliado em R$ 3 bilhões.

Sempre lembrando que se trata de um esporte, o time não vai ganhar sempre, e o investimento feito no produto principal, que é o time/jogadores, não garante vitórias dentro do campo. Essa variável com um planejamento financeiro saudável precisa sempre ser contemplada.

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